Statsbomb #1 - Relacional ou posicional? O segredo das linhas de passe

Uma breve exploração dos estilos de jogo de Real Madrid e Barcelona (14/15)

Tática
Barcelona
Real Madrid
Jogo de Posição
Jogo Funcional
Statsbomb
Análise de Redes
Author

Volante Subversivo

Published

20/10/2023

Há um tempo que ando com vontade de construir um sistema de leitura de dados de eventos do jogo a partir do R. Entretanto, a ausência de acesso a dados regulares deste tipo é um impeditivo inegável: quem nunca criou um modelo em algo e ficou cheio de vontade aplicá-lo em algum outro lugar? Com o acesso proibitivo aos dados de eventos, sempre fiquei receoso, pensando se não seria jogar energia fora. Contudo, a ausência de dados mais granulares, ao analisar o futebol, assim como a repetitividade de tabelas, também vinham me incomodando cada vez mais e fui, pouco a pouco, criando coragem e vontade de mexer nos arquivos .json misteriosos que rondam a internet.

O passo final para aceitar esta empreitada foram dois eventos: primeiro, o anúncio da ida de Neymar às terras dos sheiks sauditas, decretando o fim de qualquer ambição em sua carreira; e, segundo, os debates acalorados nas redes sociais sobre o futebol praticado por Diniz na seleção brasileira. Oras, se o suposto jogo aposicional ou relacional é tão distinto daquele proposto no jogo posicional, certamente devemos conseguir analisar estas diferenças a partir de métricas e estatísticas, correto? Por isso, acessar os dados granulares seria importante para poder efetivamente comparar estes diferentes estilos: podemos medir a distância de seus passes e suas direções, visualizar as posições dos jogadores e a direção de suas movimentações, etc.

Sem o acesso aos dados mais puros, certamente ficaríamos reféns de interpretações dominantes sobre o futebol — e isto seria, é claro, um impeditivo para compreendermos, de fato, os ditames da escola aposicional. Mas retornemos para Neymar, também conhecido como o menino Ney: por que, raios, dois temas tão distintos me inspiraram a desenvolver esta temática? Talvez seja porque Neymar foi o último craque brasileiro que reinou em terras catalãs, sob a suposta prisão do modelo posicional — a qual ele, aliás, não se adaptou imediatamente. Ronaldinho Gaúcho, seu antecessor, foi escanteado por Guardiola em detrimento de um baixinho argentino; Philippe Coutinho, seu sucessor, falhou de forma retumbante, mesmo depois de um começo promissor; Raphinha, embora não esteja mal, ainda não atingiu o mesmo nível de seu ídolo.

Acredito que, aqui, cabe um pouco daquela nostalgia de ver aquela gana e aplicação de um jovem jogador que já presenciamos anteriormente, sem estar danificado pelas lesões (as quais, sim, foram muito duras para ele) e pelos fatores extra-campo (tão duros quanto as lesões, talvez). Mais do que isso, acredito que a demonstração da performance de nosso menino nesta época, no coração do jogo posicional, serve também para desmistificar e relativizar a suposta inconciliabilidade entre os diferentes estilos. Afinal de contas, não falamos em absolutos, mas de princípios e práticas de jogo que se posicionam em um continuum e, inegavelmente, se modificam diante de diferentes circunstâncias de jogo e de elenco.

Oras, nada é mais representativo desta questão que a temporada histórica de Guardiola no Manchester City: foi apenas após utilizar quatro zagueiros na sua linha defensiva, reviver o malfadado e “ultrapassado” 4–4–2 e contar com a ajuda de um gigante norueguês artilheiro completamente oposto à filosofia tiki takista (a qual Guardiola diz odiar) que o lendário técnico catalão finalmente conseguiu conquistar sua segunda Champions League.

Pensando em tudo isso, resolvi vasculhar os dados disponibilizados pelo Statsbomb e traçar algumas análises. Visando começar a trabalhar estas questões, resolvi escolher um jogo que unifique, talvez, ambas as tendências aqui colocadas, tendo-se nosso menino Ney se consolidando na equipe catalã, ainda sob a batuta de seus parças sul-americanos; um confronto entre o posicionalismo de Luís Enrique e o relacionalismo de Carlo Ancelotti; a genialidade de mestres posicionais como Mascherano e Iniesta; e, por fim, uma demonstração da relatividade destes conceitos a partir do trio MSN.

O jogo ao qual me refiro é o El Clásico da 28ª rodada da temporada de 2014/2015 de La Liga. Seu resultado final foi uma vitória de 2 x 1 para o Barcelona, em um jogo muito disputado, no qual a genialidade de Suárez fez a diferença. Para este texto, focarei nas relações criadas por meio de passes entre estas equipes e suas posições.

Linhas de passe e relações: Barcelona

Posição média e linha de passes dos jogadores do Barcelona. Dados: Statsbomb.

Esta imagem é bastante próxima àquela proposta por David Sumpter para representar o jogo de posição (veja a seguir), emulando-se sua forma mais conhecida: formam-se triângulos e proximidades entre os diferentes jogadores, permitindo-lhes ter linhas de passe constantes para tabelas e trocas rápidas de passes.

Fonte: SUMPTON. Soccermatics.

Contudo, como está bastante claro ao justapor as duas imagens, a versão de Luís Enrique possui algumas diferenças: Messi se encontra mais abaixado, próximo ao meio de campo, enquanto os laterais também se distinguem, com Daniel Alves aproximando-se mais ao centro e Jordi Alba mais aberto e avançado. Contudo, o uso de um lateral mais defensivo e outro mais ofensivo não é novidade na proposta do jogo de posições: o próprio Daniel Alves já cumpriu papel mais ofensivo, em sua dupla com Abidal, durante o período de Guardiola no comando do Barcelona.

A diferença principal, contudo, talvez esteja no fato de que os meio-campistas também se compensam e formam uma diagonal com Piqué e Neymar (3→14→8→11), seguindo um modelo com elementos do futebol sul-americano. O objetivo por trás desta assimetria é, claro, prover superioridade numérica em ataques à esquerda, o que pode se dar por motivos estratégicos ou pela própria qualidade da equipe. No caso em questão, Daniel Alves já se encontrava com uma idade mais avançada e estava adaptado a jogar mais centralmente, com um papel maior na construção das jogadas.

Por isso, na visão daqueles que propõem linhas rígidas entre os estilos, Luís Enrique teria sido, durante certo período do futebol do Barcelona, um “herege”, ao propôr a inclusão de elementos opostos à filosofia clássica dos blaugranas. Podemos citar, além deste leve desvio no posicionamento dos jogadores, a liberdade para contra-ataques mais fluídos, da qual o trio MSN se aproveitou bastante naquela temporada — e neste jogo em específico, como ocorre na etapa final, com a disparada de Neymar aos 66’ e uma rápida jogada aos 73’.

Contudo, estas observações não revelam a centralidade real dos jogadores: quais deles, de fato, ligam e constroem as jogadas de sua equipe? Pelas imagens acima, deduziríamos que este é o pivote, Mascherano, repleto de linhas grossas ao seu redor. Se abstrairmos os espaços dos jogadores, poderemos ver melhor suas redes de ligações e como cada um se associa ao outro:

Sociograma de passes do Barcelona. Dados: Statsbomb

Como podemos ver neste sociograma, Iniesta (8) e Mascherano (14) são os principais distribuidores de bola da equipe. Note que eles ocupam uma posição central neste gráfico e possuem ligações variadas com diversos jogadores: Mascherano se associa bastante com a dupla de zaga (Piqué [3] e Mathieu [24]), com o próprio Iniesta, Dani Alves (22) e Messi (10). Já Iniesta se dissocia de Piqué, mas, em compensação, se aproxima do artilheiro Luis Suárez (9), enquanto Rakitic assume passes muito mais agudos, ligando-se principalmente com Messi e Dani Alves.

Nestas posições, portanto, Mascherano cumpre o papel do pivote, enquanto Iniesta se torna uma espécie de Mezzala, atuando no meio espaço entre os pontas, laterais e zagueiros, mais aberto, enquanto Rakitic, por fim, seria o jogador mais agudo, focando em penetrações a partir do espaço gerado por Messi ao vir buscar a bola no meio de campo.

Por este mesmo motivo, o jogador croata pouco participa com passes, cumprindo um papel tático central para a equipe, auxiliando na pressão (como quando retarda o contra-ataque do Real Madrid na jogada do gol, em um escanteio batido por ele mesmo) e surgindo como elemento surpresa no ataque (logo aos 2min de jogo, com bela jogada de Iniesta). A noção de função — ou, numa tradução melhor, papel — se torna um pouco complicada para se opôr à ideia de posição: Rakitic claramente possui um papel distinto à sua mera posição, distinguindo-se, por exemplo, do que seu companheiro de meio de campo (Iniesta) faz, assim como Messi se diferencia de Neymar, etc. Podemos colocar, pois, mais uma relativização dos conceitos apresentados pelos relacionalistas.

Iniesta, por sua vez, possuiu um parceiro de flanco essencial para fazer seus passes aflorarem: Neymar. Através das movimentações do antes jovem ponta brasileiro, conseguia-se, ao mesmo tempo, abrir espaço tanto para a enfiada nos flancos quanto para a associação com Suárez. Na mesma jogada na qual destacamos o papel de infiltração de Rakitic, isto pode ser constatado: Neymar, ao estar colado à linha, prende Carvajal e o impede de interceptar a bola enfiada por Suárez em linda tabelinha com o camisa 8 grená.

Outro papel extremamente importante de Neymar era sua infiltração na linha defensiva adversária, a qual fez, taticamente, com maestria, por mais que, na hora da finalização, tenha pecado pela falta de capricho. É somente a partir desta liberdade que o menino Ney conseguia criar caos na defesa madridista e quase liquidou a fatura em pelo menos três momentos do jogo.

Linhas de passe e relações: Real Madrid

Posição média e linha de passe dos jogadores do Real Madrid. Dados: Statsbomb.

Em comparação ao ataque grená, o trio BBC não se dá, neste caso, em uma trinca: Benzema (9) e Cristiano Ronaldo (7) aparecem livres para circular entre os espaços, com ambos tendendo mais à esquerda, enquanto Bale (11) fica espetado na direita, chamando a marcação, ao mesmo estilo de Neymar. Podemos notar, inclusive, um papel tático semelhante entre os dois: se Neymar puxou Carvajal aos 2’, Bale fez o mesmo com Vermaelen e Iniesta no gol de Cristiano Ronaldo.

Por outro lado, embora ambas equipes tenham assimetrias que favorecem o ataque pela esquerda, o ataque canhoto do Real Madrid também pode ser considerado bem mais fluído que o do Barcelona: Isco (23), Marcelo (12) e Cristiano (e, às vezes, até mesmo Sergio Ramos [4]) se revezaram no ataque deste espaço, protegidos pela posição mais fixa de Carvajal (15) e pelas leituras e esforços ímpares do par de meio-campo (Kroos e Modric). Não à toa, os sofrimentos no contra-ataque chegaram para o Real Madrid quando o lateral direito foi liberado para o ataque após sofrer o segundo gol do Barcelona.

Note, também, que Isco se encontra em uma posição que, comparativamente à de Neymar e Iniesta, se encontraria em um meio-termo: mais aberto que o camisa 8 grená, mas também mais atrasado que o camisa 11 blaugrana. Isto significa que seu papel, enquanto meio-campista de origem, se torna muito diferente do proposto por um ponta, dando liberdade para Marcelo subir enquanto lança bolas para o trio BBC.

Por isso, é possível ver, aqui, mais do que um conceito diferente de jogo, uma adaptação à característica dos jogadores, que leva à liberdade dada a Marcelo, Cristiano, Benzema, Modric e Kroos. Há algo realizado na mesma medida quando consideramos o posicionalismo: no caso deste jogo, Messi, por exemplo, cumpre um papel bastante diferente do modelo clássico do tiki taka espanhol, como demonstramos acima, assim como, em outros trabalhos, Guardiola chegou a liberar seus laterais para realizar função parecida à de Marcelo, como foi o caso com Zinchenko e Cancelo no Manchester City.

Contudo, há, sim, diferenças na proposição de jogo entre as duas equipes, em especial quando tratamos das relações estabelecidas entre os jogadores. Isto fica bastante claro em nosso sociograma de passes do Real Madrid:

Sociograma de passes do Real Madrid. Dados: Statsbomb.

De início, talvez o elemento que mais salte aos olhos neste caso seja a assimetria presente nas conexões entre estes grupos: há uma proximidade maior, em um lado do campo, entre Marcelo, Benzema e Isco, em especial em comparação com o triângulo oposto (Carvajal, Bale e Cristiano). Isto se dá porque, como pudemos ver na posição dos jogadores, Carvajal se encontra mais fixo na defesa, para cobrir Bale, e, assim, sobra para Modric o papel de ser a âncora da equipe no lado direito — tal leitura pode ser reforçada pelo passe de Modric para Bale, aos 7’, que, em seguida, arma para o chute de Benzema.

Além disso, se, no caso do Barcelona, a centralidade era compartilhada por Iniesta, Mascherano e Messi, com os três posicionados centralmente em nosso sociograma, o grande maestro madridista foi Toni Kroos (8): forma-se uma completa rodinha em torno do meio-campista alemão — o qual, aliás, foi treinado por Guardiola no Bayern — , responsável unir as diferentes fases, realizando papel semelhante ao de Mascherano no Barcelona. Outra comparação que podemos fazer é entre Iniesta e Modric: ambos cumprem o mesmo papel de articular a fase mais ofensiva da equipe. O croata possui, entretanto, a diferença de possuir uma liberdade de movimentação maior, percorrendo o campo inteiro, em especial por conta da fixação de Isco na esquerda e Carvajal na direita. Enquanto isso, Iniesta precisava tomar cuidado para não bater cabeça com Neymar, Alba, Mascherano e Messi, escolhendo muito bem o seu espaço de atuação.

Outra característica bastante peculiar é o isolamento de Bale, reforçando seu papel agudo no jogo, evitando trocas com jogadores de trás — ele teve mais passes apenas que Casillas — e perdendo muitas bolas em suas jogadas. Entretanto, quem mais se destaca na perda de posse é Cristiano Ronaldo, que recebeu 60 passes e devolveu apenas 32 destes: suas jogadas, então, eram ainda mais agudas, objetivas e arriscadas do que Bale, mas, ao contrário, por se envolver tanto no jogo, não tendia a se isolar no mesmo nível que o ponta britânico. Podemos ver esta tendência de sempre atacar do galês presente num contra-ataque aos 34’30’’, quando Marcelo recupera uma bola maravilhosa e a jogada se desenvolve pela esquerda até o centro, quando Bale se precipita e acelera a corrida, sai do espaço de apoio ao companheiro com a bola (Isco) e o força a tentar um passe muito mais complicado para Carvajal, que vinha de trás, aberto pela direita.

Estas relações, nas quais jogadores se isolam e tem liberdade absoluta para arriscar, podemos adiantar, não possuem um equivalente, em nível, no Barcelona. Mesmo Rakitic, por exemplo, ainda se encontra dentro da rodinha de passes em seu sociograma. Isto reforça o papel singular do galês na finalização de jogadas, atuando quase como um ponta de lança, autorizado a infiltrar nos espaços deixados por Benzema e Cristiano e puxar a linha defensiva horizontal e verticalmente.

Neymar, por sua vez, que seria o jogador com maior “desperdício” de posse no Barça, em comparação com Cristiano, recebeu 55 passes e devolveu 38 destes, número proporcionalmente bem maior ao do português (53.3% x 69.9%). Não acredito, contudo, ser possível enxergar, nestes números em específico, alguma relação com a oposição relacional x posicional. Pelo contrário, me parecem, muito mais, representar um estilo de jogo mais direto do Real Madrid (este teve uma média de 6.5 metros de seus passes, enquanto a do Barça era de 4.9 metros), fruto das características de seus jogadores e da linha avançada de seu adversário. Se enfrentasse uma equipe mais retrancada e defensiva, muito provavelmente esta equipe teria passes mais curtos.

Contudo, uma das explicações táticas chave para entender o isolamento de jogadores é que Bale é claramente designado para ser a “sobra” no ataque: quando o jogo se concentrava no lado esquerdo, era ele quem aparecia à direita para dar amplitude e aproveitar o espaço gerado pela compressão no lado oposto. Quando o jogo ia para a direita, era Marcelo quem ficava na sobra, assim como, quando era em seu lado, ele tinha liberdade para infiltrar e agir centralmente, sempre de acordo com os movimentos de Cristiano, Isco e Kroos. Trata-se, pois, de um verdadeiro craque, técnica e taticamente, cuja liberdade apenas potencializa sua equipe. E, Cristiano e Benzema, por sua vez, flutuavam constantemente entre outras três principais funções, revezando o ataque à última linha, a abertura pela esquerda e a descida para ajudar na armação.

Fluxos de passe e a criação de espaços: descontruindo mitos

Não desenvolvi tanto os elementos táticos do jogo de posições do Barcelona nas seções anteriores porque, acredito, tenho algo mais interessante a acrescentar com esta análise a seguir. De acordo com cálculos de centralidade mais sofisticados, mais especificamente a centralidade do autovetor, que levam em conta a sua ligação com jogadores distintos e a ligação destes com outros, Iniesta seria o jogador central da equipe do Barcelona: ao ligar jogadores diferentes, com bastante regularidade, torna-se o principal articulador da equipe. Mascherano, contudo, não está muito atrás — ele possui 0.93 do valor de centralidade de Iniesta. Isto significa que estes dois jogadores são os armadores da equipe, mas, como podemos ver nos gráficos abaixo, em momentos distintos do jogo.

Dados: Statsbomb.

Dados: Statsbomb.

Note como os passes de Mascherano são mais comuns que os de Iniesta, mas são, em sua grande maioria, girando o campo, isto é, movimentando a bola entre seus diferentes setores. Iniesta também a movimenta, mas seus passes mais curtos e próximos à área expressam sua marca mais “relacional”. Além disso, podemos perceber que vários passes se aproximam bastante à área e trazem perigo ao adversário, enquanto os passes de Mascherano se limitam ao meio-campo. Para se ter uma ideia, as somas das progressões horizontais e verticais, respectivamente, dos passes destes jogadores, durante todo o jogo, seriam as seguintes:

  • Mascherano: 1065.3 metros; 95.7 metros.

  • Rakitic: 483.6 metros; 67.5 metros.

  • Iniesta: 647.5 metros; 296.3 metros.

Ou seja, Iniesta, mesmo se posicionando mais à frente, foi o grande progressor do meio de campo, responsável por agredir o adversário e encontrar passes que criassem chances de gol, avançando verticalmente. Ele é, nos jargões do jogo de posição, o “terceiro homem”: um jogador livre entre as linhas, disposto a e capaz de aproveitar sua vantagem espacial e convertê-la em perigo. Este é um papel diferente da distribuição de Mascherano: o pivote, pelo contrário, distribui as bolas para os flancos e movimenta-a lado a lado para efetivar as superioridades numéricas e espaciais criadas pelas movimentações de seus companheiros. Além disso, ele fixa posição próximo ao setor da bola, buscando recuperar a posse no caso de um contra-ataque e, por seu caráter distributivo, pouco se envolve em tabelinhas.

O elemento central destas imagens, contudo, creio, está na dinâmica temporal dos passes — por isso a imagem está em um gif. Note como eles não são monotemáticos e possuem fluxos bastante particulares, com bastante movimentação entre eles, modificando-se suas posições e destinos. Raramente um passe é dado no mesmo local seguidamente, demandando-se sempre a movimentação do jogador para outro espaço. Esta é a grande diferença entre o “tiki taka” bem executado e a versão enfadonha realizada em terras brasileiras: o jogador precisa movimentar a bola e também se deslocar, abrindo espaços para os seus companheiros e lendo as brechas deixadas por eles.

Tal tarefa muitas vezes pouco é executada pelos nossos jogadores, bastando-se lembrar das inúmeras idas e vindas que a bola costuma fazer no entorno da defesa adversária, formando um inofensivo “U” que jamais chega às áreas perigosas do campo. Nestas situações, quebrar o ritmo do adversário, buscar jogadas individuais e associações rápidas e agudas (e, por consequência, arriscadas) é uma necessidade. Além disso, a educação em torno das “posições” não passam, na realidade, de uma forma de automatizar e simplificar a compreensão de jogo de seus atletas, agilizando seu raciocínio e estimulando a movimentação dos jogadores em direção às áreas perigosas do campo. Mesmo nos casos do tiki taka guardiolista mais exagerado, em seus momentos de maior rigidez, sempre teve-se figuras como Messi para arriscar jogadas e evitar a previsibilidade do jogo.

Prova absoluta de que esta é parte central da escola posicional pode ser encontrada na seguinte fala de Guardiola, para Martí Perarnau:

“If I had a line of five rivals in front of me, as usual, they’d want to make sure that we could only circulate the ball in a U-like circular movement in front of them — searching from wing to wing for space via the midfield, but never getting any depth or creating any danger. This line of five midfielders would inevitably be tightly pegged to the four defenders behind them — there would be no space between the lines. These two compact lines of opposition obliged me to use space wide in order to avoid danger. I’d use two wingers — making themselves available on each touchline and capable of going deep when it was the right time. The other attackers needed to move between the two lines. To achieve that I had to lead the line of five astray — move it about, shake it up, introduce disorder, trick it into thinking that I was about to go wide again and then — boom! — split them with an inside pass to one of the strikers. And that’s that. They are turned inside out, suddenly having to run towards their own goal”. PERARNAU. Pep Confidential.

Por isso, precismos tomar cuidado quando afirmamos algo sobre os modelos de jogo que comentamos: nem toda equipe que supostamente representa seus princípios o faz de forma correta, assim como um jogo isolado tampouco representa o todo daquele estilo. Ou seja, para termos alguma palavra definitiva sobre estes estilos, precisamos de uma análise mais aprofundada sobre estas equipes, acompanhando com suas evoluções no tempo, o que buscarei fazer nas próximas postagens desta série. Contudo, algumas certezas podem ser tiradas desta análise, as quais irei condensar na próxima seção, à guisa de conclusão.

Conclusão: mitos fundadores e escolas de pensamento

Espero ter demonstrado, em esta análise bastante básica, como conceitos próximos e distintos estão presentes nestas duas equipes que são ditas como opostas, de acordo com o proposto conflito entre relacionalismo e posicionalismo. Não pretendo me alongar muito no presente momento, mas acredito ter esboçado as proximidades entre as diferentes filosofias, assim como algumas de suas diferenças — as quais, acredito, são mais sutis do que algumas análises pretendem demonstrar.

Neste sentido, a diferença entre as equipes parte não apenas de filosofias, senão de inúmeras variáveis presentes para os clubes e treinadores, incluindo os jogadores disponíveis, condições do jogo, estratégia do adversário, etc. Por exemplo, Vini Jr. realizou, em 21/22, papel semelhante ao de Neymar, assim como a utilização de dois pivotes, no caso do Real Madrid, já foi realizado em outros momentos por Guardiola e tal cena não era o caso no ano anterior e posterior aqui analisado para a equipe merengue — em 13/14 utilizava-se Khedira de primeiro volante e a partir de 15/16 teve-se Casemiro nesta posição.

Por isso, as versões exageradas sobre estes modelos de jogo sempre nos levam a simplificar e vulgarizar as suas versões. Nesta toada, não é surpreendente que Guardiola rejeite a pecha de tikitakista, da mesma forma que Marx declinou ser um marxista: as tentativas de canonização e reverência a filosofias e formas de ver o mundo sempre levam ao seu empobrecimento e a perda de capacidade de captar o movimento do real. Para fazer uma analogia, se os princípios futebolísticos de Guardiola são o equivalente à teoria de Marx, a figura do jogo de posições estanque e rígido é, na melhor das hipóteses, o equivalente ao lassalianismo e o estalinismo. Mas talvez pudéssemos ir ainda mais longe: em alguns debates digitais, sequer se chega a este ponto, aproximando-se muito mais de uma versão parecida à fantasia de um suposto marxismo cultural, que em nada se aproxima de sua proposta real.

Sendo assim, ver a expressão real do jogo, a partir de dados e exemplos concretos, é o caminho perfeito para entendermos os preceitos de determinadas filosofias. Outra questão central é entender que nenhum modelo é perfeito e tampouco servirá para todas as ocasiões: a genialidade tática de um treinador não está em possuir um modelo mágico, mas sim de sua capacidade de extrair o máximo de seus jogadores ao mesmo tempo em que se aproveita das deficiências de seus adversários. Guardiola certamente aprendeu isso, como pudemos ver em seu período na Alemanha e na Inglaterra, e Diniz também parece finalmente aceitar este fato.

Além disso, é importante notar que a consagração de todo sistema depende de seus heróis históricos, os quais, muitas vezes, realizam suas missões indo contra os próprios princípios daquilo que consagram. Da mesma forma, os entreguistas piedosos das equipes adversárias, que, num toque de azar, escrevem a história ao revés, condenando-se ao ostracismo, são pouco lembrados. Exemplo claro disto é o jogo aqui descrito: teríamos a mesma história para contar se, por acaso, Suárez não tivesse virado a chave do jogo com seu golaço? Não podemos responder, mas apenas apontar que ir contra as tendências dominantes pode ser, sim, uma boa ideia, ainda mais para desvelar o fino véu que encobre a semelhança de diferentes métodos.

Por isto, cabe ainda muito texto e bytes para desvendarmos as diferenças empíricas entre os diferentes estilos. Contudo, acredito ser válido ressaltar que muitas destas supostas diferenças não passam de mitos fundadores e, enquanto tais, devem ser lidas com cuidado. Todo mito fundador traz elementos de verdade, mas tomá-los como verdade absoluta causa imensos problemas para a compreensão histórica e objetiva de nossos objetos. Ou seja, isto não quer dizer, por exemplo, que a miscigenação não é uma marca característica do Brasil ou que a Ucrânia não trava, de fato, uma longa luta por sua independência, mas apenas que, aceitá-los ingenuamente, pode nos levar à aceitação de discursos racialistas, até mesmo chegando a adorar colaboracionistas do nazismo, e apoiar, de forma indireta, a tese da democracia racial em nosso país. Da mesma forma, apregoar o jogo de posição como o lobo mal da história do futebol me parece mais jogar o bebê fora com a água suja do que efetivamente contribuir com um avanço no debate tático.